Como ingrediente de doces e salgados ou na formulação de óleo cosmético, o coquinho de licuri aos poucos deixa de ser exclusividade da Caatinga e alcança outras regiões do Brasil, beneficiando comunidades do sertão


A planta chegou até a batizar cidades, como Ouricuri (PE), hoje com 66 mil habitantes. E também é motivo de festa, sertão adentro. Na região de Caldeirão Grande, Norte da Bahia, a Festa do Licuri reúne os quebradores de coco, com direito a gincana, música e capoeira. O forrobodó deste ano acontece no dia 26 de abril, em Canequinho, município de Serrolândia.

“Licuri botou
Gameleira no chão
Licuri botou
Gameleira no chão
Botou (...)”.
Gameleira no chão
Licuri botou
Gameleira no chão
Botou (...)”.
Gameleira é uma figueira (gênero Ficus) que ‘abraça’ palmeira ou árvore para se apoiar e quase sempre termina por estrangular a planta da qual se serviu para ficar em pé. Na cantoria da capoeira, porém, o licuri encara – e derruba – a gameleira!
Tantas homenagens têm significância. O licuri só não é a salvação da lavoura porque é planta nativa e os experimentos de cultivo ainda são poucos (embora promissores).
A palmeira cresce naturalmente na Caatinga, garantindo alimento e algum ganho a dezenas de comunidades no chamado Polígono da Seca, a região que detém os mais baixos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil. O IDH mede a qualidade de vida humana, usando indicadores como alfabetização, taxa de matrícula escolar, expectativa de vida e renda.
Caldeirão Grande está entre os maiores produtores de licuri da Bahia. São colhidos os frutos de 16 milhões de palmeiras, somando cerca de 500 toneladas por ano. E desde quando predomina o extrativismo do licuri? “Desde sempre”, responde Josenaide de Souza Alves, 48 anos, uma das fundadoras da Cooperativa de Produção da Região de Piemonte da Diamantina, a COOPES, criada em 2005 por produtores que queriam se libertar dos intermediários.
Do licuri se aproveita tudo, conta Josenaide: “são mais de 20 alimentos derivados do coco, como biscoitos, bolachas, salgados, licor, azeite, licurimel, granola, paçoca, cocadas, pão, sorvetes, licuri cozido e até leite congelado de licuri. ‘Garras’, troncos e raízes secas alimentam os fornos para assar mais de 30 toneladas de biscoito de licuri. Os produtores comercializam ainda óleo fitoterápico para massagem e creme hidratante para cabelos. Da palha se faz todo tipo de artesanato. E tem ainda as casquinhas da amêndoa, já incorporadas na confecção das biojóias”.

“O licuri é um produto sustentável, predominante na região. Seu aproveitamento melhorou a renda de muitas famílias. Houve um maior incentivo para a preservação do licuri, valorizou também o trabalho da mulher quebradeira de coco, elevou a auto-estima. Muitas têm dinheirinho garantido para fazer a feira e isso diminui o êxodo rural”.
Outro bom exemplo de união entre artesãos e o licuri está em Santa Brígida, o quarto pior IDH da Bahia. Desde 2001, cerca de 40 famílias se agruparam na Associação de Artesãos de Santa Brígida para produzir entalhes de madeira de umburana morta e bolsas, chapéus, fruteiras e cestos feitos a partir da palha do licuri.

Para evitar que a extração tenha impacto ambiental e obter a licença necessária para a retirada da matéria-prima, a associação já segue um plano de manejo feito por uma consultoria ligada ao Sebrae.
Com relação à fauna, a importância do licuri merece um capítulo à parte. O fruto da palmeira é recurso indispensável para a sobrevivência da arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari), considerada criticamente ameaçada nas listas vermelhas nacional (Ibama) e internacional (IUCN). A espécie também está inserida no Anexo I da Convenção Internacional sobre o Comércio de Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (CITES) por sofrer pressão do tráfico internacional.

Um diagnóstico do estado de conservação da palmeira na área de ocorrência da ararinha foi realizado pelos pesquisadores Joaquim Rocha dos Santos Neto e Monalyssa Camandaroba, respectivamente, do Centro Nacional de Pesquisa para Conservação das Aves Silvestres do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (Cemave/ICMBio) e da organização não-governamental Proaves. O objetivo era identificar os sítios de alimentação, levantar a forma do uso da terra e eventuais ameaças.
Foram mapeados 37 sítios numa área de 4.711 hectares, com uma densidade média de 38 licurizeiros adultos por hectare. Os pesquisadores constataram baixa regeneração natural da palmeira; alta taxa de senescência (fase final do ciclo de vida); e baixo porcentual de proteção, com apenas 5,4% dos licurizeiros dentro de unidades de conservação. As principais ameaças aos sítios de alimentação das araras são pecuária, queimadas, retirada de lenha e mineração.
Outros estudos vieram depois, embasando o Plano de Manejo para o Licuri, em vias de ser publicado em revista científica, neste início de 2009. Além de trazer um diagnóstico mais completo da palmeira, o plano traça linhas gerais de conservação dos sítios de alimentação da ararinha, apontando medidas para a proteção de ambas as espécies, como a prioritária regularização das propriedades particulares, com averbação das áreas de Reserva Legal e manutenção das Áreas de Preservação Permanente.
O Cemave ainda sugere o incentivo à criação de Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs) na região, especialmente em áreas com grande densidade de licuri, através de ações de divulgação do mecanismo de criação e das vantagens deste tipo de unidade de conservação junto aos proprietários de terra.
O Plano de Manejo ainda propõe políticas públicas, fortalecimento da legislação, maior envolvimento do governo e da pesquisa, educação ambiental e incentivo à participação da comunidade, a par da instituição de um programa de reconhecimento dos colaboradores do Plano de Conservação do Licuri. A idéia é estabelecer critérios a serem atingidos pelos proprietários rurais e emitir certificados com o título de ‘Guardiões do Licuri’ para aqueles que cumprirem as metas. Assim, não só as ararinhas terão seus protetores, como já mostramos na reportagem Impulso de Vida (Terra da Gente edição 9, de janeiro de 2005), mas também o licuri passará a contar com seus guardiões.

As primeiras sementes – ou melhor, mudas – para o plantio experimental do licuri foram lançadas em 1999, pelo Centro Nacional de Pesquisa para Conservação das Aves Silvestres (Cemave): 800 mudas fornecidas pela Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf) e um viveiro formado na Fazenda Santana, em Jeremoabo (BA). O projeto foi interrompido por 2 vezes, devido ao alto custo da irrigação, mas 367 palmeiras sobreviveram e 10% delas já entraram em fase reprodutiva. “Podemos afirmar que é perfeitamente possível plantar licuri”, reitera o analista ambiental do Cemave, Emanuel Barreto Alves de Sousa.
E por que na área plantada a irrigação é tão importante, se o licuri que ocorre naturalmente cresce e sobrevive sem esse cuidado? A diferença, de acordo com Emanuel, é “o sombreamento, uma condição essencial para o crescimento inicial dessa palmeira. De fato, encontramos muitas mudas crescendo vigorosamente sob a vegetação da Caatinga, tendo apenas a água dos poucos meses de chuva”.

Para aumentar o índice de germinação do licuri, o fruto (com ou sem polpa) deve ser embebido em água por 3 dias e só então é colocado nos saquinhos. As plântulas nascem em 90 dias e as mudas são sombreadas por mais 180 dias, para depois serem transferidas para o local definitivo.
As primeiras 2 mil mudas destinam-se à recomposição da vegetação de Caatinga e das matas ciliares das margens e das nascentes do rio Vermelho e do rio Vaza Barris, afluente do São Francisco. E logo outras deverão começar a mudar a paisagem das propriedades rurais, aumentado a oferta de licuri para todos seus usuários.
Leia no Biblioteco: "Impulso de vida", sobre a arara-azul-de-lear
Fonte: http://www.terradagente.com.br/NOT,0,0,383567,Licuri++palmeira+sertaneja+arara-azul-de-lear+flora+Terra-da-Gente.aspx
Nenhum comentário:
Postar um comentário